quarta-feira, 17 de março de 2010

O ideal

Mortadela era seu apelido na Padaria do Seu Lima. Tinha 38 anos, mulato, com a cabeça raspada e olhos de quem dorme pouco ou quase nada. Saía de casa de madrugada, às 4, para chegar antes de abrir a padaria e organizar os frios. O Português não dava sopa com o horário. Sempre levava uma revista porque “nunca se sabe quando se conseguirá um lugar sentado na condução, mas na maioria das vezes ia mesmo ouvindo as notícias no radinho para diminuir o peso das duas horas de viagem em pé.

Depois de quase dez anos de trabalho, recebeu uma surpresa que fez seu coração parar  por alguns segundos, que pareceram horas... Ganhou, sozinho, a Mega-Sena acumulada.

Cara-a-cara com o bilhete premiado, não sabia o que fazer. Nem comemorou, nem berrou, nem saltou, nem dançou, nada disso, ficou sim com um medo danado! “Mas não é assim que se comemora nas popaganda!” pensou, mas o medo era mais forte.

Medo de tanta coisa... De perder o dinheiro, da inveja dos “parente”, da esposa virá grã-fina metida à besta, dos filhos virá “prayboy”! Medo de mudar, medo de outra vida, de tudo ser diferente.

Olhou para a senhora que sempre tomava o mesmo ônibus com ele e perguntou:

-A senhora já pensou no que fazê se ganhasse na Sena?
-Nunca pensei, porque não gosto de jogá, mas o ideal deve ser comprá uma casa e colocá o resto no banco.

Chegou na padaria e enquanto trocava de roupa perguntou ao chapeiro:

-Vanderlei, cê joga na Sena, meu?
-Opa!
-Já pensou no que fazê se um dia ganhá?
-Por que cê ganhô?
-Vixe, tá maluco, é só uma pergunta!
-Óia, se ganhasse o ideal era mudar pro Gringo porque aqui todo ganhadô ou é seqüestrado, assassinado ou os interesseiro transforma a vida dele num inferno!

Lá pelas 7, chegou o Dr. Soares, sempre gozador, de terno e gravata, para tomar a média e comer o sanduíche de mortadela Ceratti de todo dia.

-Mortadela, bom dia! O de sempre, e capricha no sanduba!
-Pode deixá, Dr. Soares.

Ao levar o sanduíche à mesa do ilustre senhor, perguntou:

-Dr. desculpe interrompê mas sei que o senhor é um empresário e queria perguntá uma coisa...
-Mortadela, nem vem com gozação porque não teve futebol ontem...
-É sério, Dr., tem um conhecido lá donde eu moro que ganhou na Sena e tá com um medo danado de fazê besteira. O que o Dr. acha que ele deve fazê?
-Mortadela, a poupança hoje é um bom investimento devido aos incentivos do Governo. A casa própria também está em um bom momento para a compra, com juros baixos e incentivos também. O carro então, nem se fala, por qualquer trezentos reais dá para comprar um carrinho parcelado com juro baixo. Agora, veja bem, fale para seu amigo que o maior risco nessas horas é perder a noção da realidade, ostentar, gastar sem controle e parcimônia. Ele deve aproveitar essa oportunidade única, e essa grande sorte, para dar um novo horizonte para sua família e a educação é a base de tudo, você sabe?! Se tem filhos é hora de investir no futuro deles... Esse é o ideal, Mortadela.

A cabeça não saía da enxurrada de dinheiro que receberia, no que poderia comprar, viajar, melhorar a vida da família... Até que a ponta do dedo ficou na máquina de fatiar! Sangue para todo lado, gritaria e correria para chegar no hospital logo e salvar o dedinho.

No hospital, com tudo resolvido e a ponta do dedo no lugar, esperava o chefe pagar a conta quando voltou a pensar na Mega-Sena. Olhou para o jovem rapaz do seu lado e puxou conversa como se fosse papo de elevador:

-Quase fico sem o dedo por causa da Mega-Sena.
-Foda né?!
-É. Já imaginou ganhar esse negócio?
-Não.
-Num joga?
-Só minha mãe.
-E o que ela diz que vai fazê se ganhá?
-Vai contratar um médico bom para mim.
-Ah... Sua mãe é bacana, o ideal é isso mesmo.

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